Doenças Metabólicas na Atenção Primária à Saúde

27/06/2024

Por Mariana Batalha

Médica, Mestranda em Saúde da Família, pelo programa de Mestrado Profissional em Saúde da Família (PROFSAUDE) da Universidade Federal do Sul Da Bahia (UFSB), Especialista em Saúde Coletiva (UFBA). Pós graduação em gastroenterologia (HMTJ) Membro do grupo de Pesquisa (CNPq) Educação, Saúde e Desigualdades Sociais. 

Waneska Alves

Médica Veterinária pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), Epidemiologista pelo Programa de Epidemiologia Aplicada aos Serviços do SUS (EpiSUS Avançado), Doutora em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP-Fiocruz/RJ). Membro do grupo de Pesquisa (CNPq) Educação, Saúde e Desigualdades Sociais e líder do grupo de Pesquisa (CNPq) Ciência, Saúde e Sociedade. 

Lina Faria

Doutora e mestre em Saúde Coletiva pelo IMS-Uerj, com Pós-Doutorado em Cooperação Científica Internacional pela Unicamp. É Professora Associada da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). Líder do grupo de Pesquisa (CNPq) Educação, Saúde e Desigualdades Sociais 


A doença hepática gordurosa não alcoólica (DHGM) é uma das causas mais importantes de doenças crônicas e um importante problema de saúde pública devido a sua morbimortalidade. A DHGM é uma condição clínica patológica na qual ocorre excessivo acúmulo de triglicerídeos no fígado. A doença, de início insidioso, pode variar desde a simples esteatose até a esteato-hepatite (EHNA) com fibrose e cirrose. A esteato-hepatite não alcoólica, que faz parte de um espectro amplo de doença hepática gordurosa não alcoólica, representa a forma inflamatória que pode levar à fibrose avançada e morte (CHAVES et al.,2012; YASUTAKE et al., 2014; PELUSI, et al., 2019; SHEKA, et al, 2020).

A DHGM é uma condição clínica multissistêmica que se apresenta com um amplo espectro de manifestações extra-hepáticas, como obesidade, diabetes mellitus tipo 2, síndrome metabólica, doenças cardiovasculares, doença renal crônica, malignidades extra-hepáticas, distúrbios cognitivos e síndrome do ovário policístico (KANWAL, et al., 2021).

Devido à natureza sistêmica dessa condição, a DHGM está intimamente relacionada à outras condições metabólicas e, assim, o atendimento oportuno pelos profissionais da Atenção Primária à Saúde (APS) se faz fundamental (KANWAL, et al., 2021). Este nível de atenção à saúde é ainda responsável pela maioria dos diagnósticos de DHGM realizados no Brasil. Os médicos identificam os pacientes em risco, iniciam investigações e aconselham sobre fatores de estilo de vida modificáveis. É essencial que os profissionais da APS tenham conhecimento sobre os diferentes suportes laboratoriais e clínicos para investigação de pacientes suspeitos. No entanto, há pouca concordância das diretrizes atuais sobre os procedimentos com a DHGM, o que reduz a certeza na tomada de decisão médica (SHEKA, et al, 2020; Cusi, K.; Isaacs, S.; Barb, D.; Basu, R.; Caprio, S.; Garvey, WT; et al., 2022).

Embora a DHGM seja o foco de pesquisa do campo da Hepatologia por ser uma das causas mais comum de transplante hepático, é na APS que a maioria dos pacientes com a doença recebem atendimento médico primário para fornecer cuidado de qualidade (GARG, et al., 2018; KANWAL, et al., 2021).

Entre os diferentes fatores de risco para a DHGM, destacam-se: infecções crônicas pelo vírus da hepatite B e pelo vírus da hepatite C (STREBA et al. 2015; SHEKA, et al, 2020); dieta alimentar inadequada (rica em açucares, gordura e alimentos ultraprocessados e álcool); perda brusca de peso; gravidez; cirurgias e sedentarismo (FAN; CAO, 2013; SHEKA, et al, 2020).

Entre as medidas de prevenção, a Terapia Nutricional é fundamental para minimizar as anormalidades histológicas. Uma equipe multidisciplinar pode aumentar a efetividade do tratamento, juntamente com modificações no estilo de vida, uma vez que a DHGM se associa à Sindrome Metabólica. Nesse sentido, outras medidas importantes indispensáveis para prevenir o acúmulo de gordura no fígado ou para reverter o quadro já instalado estão relacionadas à manutenção do peso dentro dos padrões ideais para altura e idade e restrinção de consumo de gorduras saturadas e bebidas alcoólicas (CRISPIM, ELIAS, PARISE, 2016; FAN, CAO, 2013)

Até início de 2024 não havia um tratamento aprovado baseado em evidências clínico-científicas para prevenir a progressão da doença. Contudo, a Food and Drug Administrationnos Estados Unidos, aprovou neste ano o primeiro tratamento para uma variante grave de doença hepática gordurosa não alcoólica. Desenvolvido pela Madrigal Pharmaceuticals, o resmetirom demonstrou eficácia na redução das cicatrizes no fígado em indivíduos afetados pela EHNA, uma condição que representa a forma mais severa da doença associada à acumulação de gordura hepática (CFF, 2024), o que reforça a necessidade do diagnóstico precoce na APS pela triagem populacional. O foco deve estar em uma abordagem preventiva para gerenciar fatores de risco metabólicos e reduzir as causas de morbidade e mortalidade (CHALASANI et al., 2012).

Cabe frisar outros fatores determinantes em saúde que interferem no diagnóstico e manejo adequados da DHGM, como os relacionados às desigualdades socioeconômicas e às dificuldades de acesso aos serviços básicos de saúde, além da pouca comunicação entre os diferentes níveis de atenção. Alguns autores têm chamado a atenção para o pouco conhecimento sobre a doença entre os tomadores de decisão e, também, para a ausência de planos nacionais e locais que abordem concretamente esse problema de saúde pública (ARAB et. Al., 2014; ESLAM et al., 2020; GODOY-MATOS et al.,2020; FAN, CAO, 2013; SHEKA, etal, 2020; MARJOT etal., 2020).

A crescente prevalência da esteatose hepática em todo o mundo, geralmente associada à obesidade, resistência insulínica e outros componentes da síndrome metabólica faz com que seja um grave problema de saúde pública. A detecção precoce em fases iniciais permite a aplicação de medidas comportamentais, dietéticas e até mesmo farmacológicas que podem evitar a progressão e facilitar a regressão das alterações hepáticas (CHAVES et al.,2012; PELUSI, et al., 2019; SHEKA, et al, 2020).

O presente estudo vem sendo desenvolvido no Mestrado Profissional em Saúde da Família da UFSB e tem o propósito de estudar a prevalência de DHGM e fatores de risco associados em pacientes com diabetes mellitus tipo 2 (DM2), atendidos em uma Unidade Básica de Saúde na cidade de Porto Seguro – Bahia. Os resultados podem sinalizar que a gênese da resistência à insulina no diabetes mellitus tipo 2, na maioria das vezes, está relacionada à doença hepática gordurosa metabólica.

A doença está relacionada à resistência insulínica (RI), ao diabetes mellitus tipo 2 (DM2), à obesidade e à dislipidemia, ou seja, fatores relacionados à Síndrome Metabólica (SM) e entre os fatores de risco estão o acúmulo de gordura no fígado e abdominal (CHAVES et.al., 2012).

O fígado é o local de produção e armazenamento de glicogênio, da gliconeogênese e da degradação de insulina. Sendo assim, o fígado tanto participa dos mecanismos fisiopatológicos do diabetes mellitus (DM) como sofre as consequências das alterações encontradas no metabolismo glicídico (MARJOT, MOOLLA, COBBOLD, et al., 2020).

"O Diabetes Mellitus (DM) é uma síndrome do metabolismo, de origem múltipla, decorrente da falta de insulina e/ou da incapacidade de a insulina exercer adequadamente seus efeitos". A insulina é o hormônio produzido pelo pâncreas responsável pela manutenção do metabolismo da glicose. Sua falta provoca déficit na metabolização da glicose e, consequentemente, diabetes mellitus tipo 2. O DM tipo 2 é caracterizado por maior resistência à insulina com resposta secretória inadequada, e também responsável por 95% dos casos de DM (BVS, 2024).

Principais sintomas do DM tipo 2

– Infecções frequentes;

– Alteração visual (visão embaçada);

– Dificuldade na cicatrização de feridas;

– Formigamento nos pés;

– Furúnculos (BVS, 2024).

Importante realizar todas as medidas antropométricas, além dos níveis de triglicerídeos séricos e da alanina aminotransferase. Descrever o estado nutricional (medidas peso, estatura, cálculo do IMC, circunferência abdominal, circunferência da cintura, circunferência do pescoço e da panturrilha). Solicitar exames bioquímicos: glicemia, hemoglobina glicada, perfil lipídico, TGO, TGP, Gama GT, entre outros (GARG, et al.,2018).

Os métodos de imagem são os melhores meios de se identificar a doença hepática gordurosa não alcoólica, especialmente a esteatose e a esteato-hepatite. A ultrassonografia abdominal é o método mais comum e prático para esse diagnóstico. Os escores de fibrose simples têm altos valores preditivos negativos na exclusão de fibrose hepática avançada e, também, em eventos futuros relacionados ao fígado (GARG, et al.,2018) e podem ser usados na atenção primária como avaliação inicial.

É recomendado o rastreamento da DHGM em todos os adultos com DM, preferencialmente com ultrassonografia abdominal e dosagem de aminotransferases séricas (GODOY et al. 2022).Os critérios propostos para um diagnóstico positivo são baseados em evidência histológica (biópsia), imagem ou biomarcador sanguíneo de acúmulo de gordura no fígado (esteatose hepática), além de um dos três critérios a seguir, ou seja, sobrepeso/obesidade, presença de tipo 2 diabetes mellitus ou evidência de desregulação metabólica (CHALASANI et al., 2012).

A patologia geralmente é assintomática e pode atingir um estágio avançado antes de ser diagnosticada. Desconforto no quadrante superior direito, fadiga e letargia são os sintomas mais comuns. A DHGM é diagnosticada após anamnese cuidadosa e realização de exames clínicos de rotina (PELUSI, et al., 2019).


Referências:

Arab, JP; Candia, R; Zapata, R; Muñoz, C; Arancibia, JP, et al. Tratamento da doença hepática gordurosa não alcoólica: uma análise revisão da prática clínica baseada em evidências. World J Gastroenterol; 20(34):12182-201, 2014. doi: 10.3748/wjg.v20.i34.12182.

BVS. Biblioteca Virtual em Saúde. Dia Nacional do Diabetes, 2024. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/26-6-dia-nacional-do-diabetes-4/

CFF. CONSELHO FEDERAL DE FARMÁCIA. Primeiro medicamento no mundo para forma grave de doença hepática gordurosa é aprovado pela FDA, 2024. Disponível em:https://site.cff.org.br/noticia/Noticias-gerais/18/03/2024/primeiro-medicamento-no-mundo-para-forma-grave-de-doenca-hepatica-gordurosa-e-aprovado-pela-fda.

CHAVES, G. V. et al. Associação entre doença hepática gordurosa não alcoólica e marcadores de lesão/função hepática com componentes da síndrome metabólica em indivíduos obesos classe III. Revista da Associação Médica Brasileira, v. 58, n. 3, p. 288-293, 2012.

Chalasani N, Younossi Z, Lavine JE, Diehl AM, Brunt E, Cusi K, Charlton M, Sanyal AJ. The diagnosis and management of non-alcoholic fatty liver disease: practice Guideline by the American Association for the Study of Liver Diseases, American College of Gastroenterology, and the American Gastroenterological Association. Hepatology; 55 (6): 2005-23, 2012.

CRISPIM, F. G. S.; ELIAS, M. C.; PARISE, E. R. Consumo alimentar dos portadores de doença hepática gordurosa não alcoólica: comparação entre a presença e a ausência de esteatoepatite não alcoólica e síndrome metabólica. Revista de Nutrição, Campinas, v. 29, n. 4, p. 495-505, 2016.

Cusi, K.; Isaacs, S.; Barb, D.; Basu, R.; Caprio, S.; Garvey, WT; et al. Diretriz de Prática Clínica da Associação Americana de Endocrinologia Clínica para o Diagnóstico e Tratamento da Doença Hepática Gordurosa Não Alcoólica em Cuidados Primários e Ambientes Clínicos de Endocrinologia: Co-patrocinado pela Associação Americana para o Estudo de Doenças do Fígado (AASLD). Endocr. Praticar, 28, 528–562, 2022.

Eslam M, Newsome PN, Sarin SK, et al. A new definition for metabolic dysfunction-associated fatty liver disease: an international expert consensus statement. J Hepatol; 73(1):202-9, 2020.

FAN, J. G.; CAO, H. X. Role of diet and nutritional management in non-alcoholic fatty liver disease. Journal of Gastroenterology and Hepatology, v. 28, n. 4, p. 81-87, 2013.

Garg, H; et al. Utility of transient elastography (fibroscan) and impact of bariatric surgery on nonalcoholic fatty liver disease (NAFLD) in morbidly obese patients. Surg Obes Relat Dis; 14 (1): 81-91, 2018.

Kanwal, F. et al. Clinical Care Pathway for the Risk Stratification and Management of Patients With Nonalcoholic Fatty Liver Disease. Fuente: Gastroenterology;161:16571669, 2021.

Godoy-Matos, A; Valério, C; Silva Júnior, W. S; Araujo-Neto, J; Giacaglia, L; Bertoluci, M. Doença hepática gordurosa metabólica (DHGM). Diretriz Oficial da Sociedade Brasileira de Diabetes, 2020. DOI: 10.29327/557753.2022-21

Marjot T, Moolla A, Cobbold JF, et al. Nonalcoholic fatty disease in adults: current concepts in etiology, outcomes, and management. Endocrine Rev. 2020;41:66-117.

Pelusi S, Baselli G, Pietrelli A, Dongiovanni P, Donati B, McCain MV, Meroni M, Fracanzani AL, Romagnoli R, Petta S, et al. Rare Pathogenic Variants Predispose to Hepatocellular Carcinoma in Nonalcoholic Fatty Liver Disease. Sci Rep. 2019 Mar 6;9(1):3682. doi: 10.1038/s41598-019-39998-2.

Sheka, A. C. et al. Nonalcoholic Steatohepatitis: A Review. JAMA; 323 (12): 1175–1183, 2020.

Streba, L. A, Vere, CC, Rogoveanu, I, Streba, C. T. Nonalcoholic fatty liver disease, metabolic risk factors, and hepatocellular carcinoma: an open question. World J Gastroenterol. Apr 14;21(14):4103-10, 2015. doi: 10.3748/wjg.v21.i14.4103.

YASUTAKE, K. et al. Dietary habits and behaviors associated with nonalcoholic fatty liver disease. World J Gastroenterol. v. 20, n. 7, p. 1756-1767, 2014.

Como citar este texto:

BATALHA, Mariana; ALVES, Waneska; FARIA, Lina. Doenças Metabólicas na Atenção Primária à Saúde. Site do Laboratório de Práticas em Educação e Saúde - UFSB, 2024. Disponível em: https://laboratoriodepraticasufsb.webnode.page/l/doencas-metabolicas-na-atencao-primaria/






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