Pensar saúde, desigualdades e violências em tempos de pós-pandemia

Por Emanuelle Pires
Graduanda em Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades pela Universidade Federal do Sul da Bahia. Membro do Grupo de Pesquisa - Educação, Saúde e Desigualdades Sociais (UFSB/CNPQ) e bolsista PIBIC pelo CNPQ, via UFSB.
Desigualdades, violências, exclusão e vulnerabilidades são algumas palavras-chave que permeiam o cotidiano das populações que se encontram às margens da sociedade. As desigualdades, sejam elas sociais, econômicas, culturais, educacionais, regionais, geográficas, raciais e desigualdades de gênero, são consideradas um problema mundial que afetam as populações de diversas maneiras, expondo-as a fatores de riscos.
O contexto das desigualdades persistentes está ligado a direitos humanos negados em todas as esferas da vida social e, na área da saúde, as desigualdades constituem barreiras ao acesso das populações aos serviços e à atenção dedicada aos cuidados essenciais (Faria, Castro Santos e Alvarez, 2023).
As violências são reconhecidas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como um dos principais problemas de saúde pública mundial, desde a década de 1990. A OMS define violências como "o uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha grande possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação" (OMS, 2002, p. 5).
Na vida das populações marginalizadas os problemas são mais graves pois demonstram a carência de recursos básicos para a subsistência e a falta de políticas públicas específicas direcionadas às suas necessidades.
As violências são expressão das desigualdades, das injustiças e exclusões sociais e, também, do crescimento do discurso antigênero. Tal discurso questiona os direitos das mulheres e das comunidades LGBT e influencia as políticas governamentais, especialmente na área da saúde. A desigualdade de gênero limita o acesso aos serviços de saúde de qualidade e contribui para taxas de morbidade e mortalidade evitáveis em mulheres e homens ao longo da vida. Entre os fatores fundamentais para uma melhor qualidade de vida estão: sistemas de saúde estruturados, abordagem comunitária, continuidade do cuidado e integralidade da atenção (Faria, 2024).
Crise sanitária: um retrato da desigualdade
A pandemia do covid-19 evidenciou o problema das desigualdades e intensificou o ciclo de violências. Além disso, contribuiu com o aumento do desemprego e da insegurança alimentar, e colocou em pauta as discussões sobre as condições de vida e de saúde das populações mais expostas ao vírus. Cabe lembrar que as populações que têm sido afetadas historicamente pelas desigualdades, também foram as mais afetadas pela crise sanitária, a exemplo dos povos indígenas, comunidades quilombolas e ribeirinhas e as populações pretas e pobres dos territórios de favela e das periféricas das grandes cidades (Badaró, Santos e Faria, 2024).
A pandemia evidenciou a importância de repensar o papel da Saúde Pública no enfrentamento a essas desigualdades e, também, no combate às violências. No início da pandemia da covid-19, segundo dados do DATASUS, a violência física contra mulher apresentou 129.092 vítimas e, em relação a raça das vítimas, 12.203 pretas, 56.643 pardas, 47.966 brancas e 1.321 indígenas.
Uma Geografia das Desigualdades
O curta-metragem Uma Geografia das Desigualdades, da Oxfam Brasil, escancara o preconceito racial e as diversas formas de violências sofridas por pessoas negras e periféricas e apresenta diferentes concepções sobre os termos "segregação socioespacial" e "urbanismo daltônico", para exemplificar a forma como a cor da pele é determinante em relação aos territórios. De acordo com a Oxfam Brasil (2019), pessoas negras são maiorias dentro das áreas de favela e periferias e a forma como estão organizadas as periferias dos países - como catalisadores para a transmissão em massa de epidemias e pandemias - se constituem em espaços marginalizados, estigmatizados e vulnerabilizados.
Cabe destacar que a pobreza extrema aumentou no Brasil e, também, em vários países na região da América Latina nos últimos anos como consequência do aprofundamento da crise sanitária da covid-19. Nesse mesmo período, as violências cresceram em meio à pandemia, especialmente a violência de gênero (Faria, 2024).
Sobre o Projeto
A pesquisa de iniciação científica Desigualdades na saúde e violências em tempos de pandemia - as estratégias da Saúde da Família em um território no Extremo Sul da Bahia (Edital PROPPG n. 05/2022 - Programa de Iniciação à Pesquisa, Criação e Inovação, 2023), coordenado pela Professora Lina Faria, foi dividida em duas etapas: a primeira, teve como objetivo analisar as práticas de cuidado da Estratégia da Saúde da Família e as abordagens intersetoriais no acolhimento às vítimas de violências em um município do Extremo Sul da Bahia, além de identificar as principais queixas e estratégias de prevenção e cuidado das equipes da ESF e da rede intersetorial no enfrentamento nos territórios.
Na segunda etapa da pesquisa, foram levantados números absolutos de Mortes Violentas Intencionais (MVI) (homicídio doloso, latrocínio e lesão corporal seguida de morte), por sexo, raça e faixa etária, incluindo também o grupo LGBTQIA+, além de dados sobre violência contra mulher (feminicídio, estupro, violência sexual e física) e violência contra crianças e adolescentes. Foi realizado um recorte dos estados do Nordeste e evidenciou-se maiores taxas de MVI e de Mortes Violentas por Causas Indeterminadas (MVCI) nos municípios mais violentos da Bahia, entre os anos de 2019 e 2023.
O que os dados dizem?
No Brasil, sua face mais evidente se manifesta nas elevadas taxas de homicídios que constituem a principal causa de mortalidade da população jovem masculina, sobretudo de jovens pertencentes a determinados territórios como moradores de periferias urbanas, que ocupam posições sociais subalternas e apresentam características étnico-raciais negras e pardas (Minayo; Souza, 1998; Cerqueira et al., 2019).
O gráfico (ver imagem) apresenta um comparativo entre os anos, segundo um dos sistemas de informação trabalhados, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2023). É possível acompanhar o aumento significativo nas taxas de Mortes Violentas Intencionais a partir de 2020, início da pandemia, principalmente no estado da Bahia, que segue como um dos estados mais violentos do Brasil. Em relação a raça das vítimas, mais de 90% são negras.
Os dados mais atuais demonstram agravos nos índices de violências direcionados a outros grupos como da população LGBTQIA+, pretos e mulheres, com aumento dos casos de feminicídios, estupros, e lesões corporais e evidencia a reprodução do machismo que perpetua na sociedade brasileira, trazendo à tona as questões de gênero. É necessário e urgente refletir sobre as diferentes manifestações das desigualdades sociais, os desafios associados às violências e as políticas públicas de prevenção que contemplem a magnitude e a importância do fenômeno.
O novo projeto intitulado Redes de informação sobre violências contra pessoas negras no Brasil e na Bahia: conexões e implicações para a saúde (Edital PROPPG nº 11/2023 - Programa de Iniciação a Pesquisa, Criação e Inovação para ações afirmativas, 2024), coordenado pela Professora Lina Faria dará continuidade a sistematização dos dados já coletados na proposta anterior, com recorte de raça/cor.
Referências
CERQUEIRA, Daniel. et al. Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Atlas da violência. São Paulo: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2019. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/19/atlas-da-violencia-2019.
BADARÓ, Maria Conceição; SANTOS, Matheus R; FARIA, Lina.Tecendo redes intersetoriais no acolhimento às vítimas de violências na Atenção Primária à Saúde. Research, Society and Development, v.13, p.e10513144825-13, 2024.
FARIA, Lina. Atenção Primária é fundamental na identificação de situações de violência nos territórios. Site do Observatório História e Saúde – COC/Fiocruz, 2024. Disponível em: https://ohs.coc.fiocruz.br/posts_ohs/atencao-primaria-e-fundamental-na-identificacao-das-situacoes-de-violencia-nos-territorios/.
FARIA, Lina; SANTOS, Luiz Antonio de Castro; ALVAREZ, Rocio. Desigualdades socioeconômicas na América Latina e Caribe: o futuro pós-pandemia para a formação profissional na saúde. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v.30, p.1-18, 2023.
FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2023. Disponível em: https://publicacoes.forumseguranca.org.br/items/6b3e3a1b-3bd2-40f7-b280-7419c8eb3b39.
MINAYO, Maria Cecília e SOUZA, Edinilsa Ramos de. 'Violência e saúde como um campo interdisciplinar e de ação coletiva'. História, Ciências, Saúde Manguinhos, v. 4, n.3, p. 513-531, nov. 1997-fev. 1998.
OMS. Organização Mundial da Saúde. Relatório mundial sobre violência e saúde. Genebra, 2002. Disponível em: https://www.cevs.rs.gov.br/upload/arquivos/201706/14142032-relatorio-mundial-sobre-violencia-e-saude.pdf.
OXFAM Brasil. Uma Geografia das
Desigualdades. Direção: Day Rodrigues. 1 vídeo (15 min), 2019. Disponível em: https://www.oxfam.org.br/geografia-das-desigualdades/.
Como citar este texto:
PIRES, Emanuelle. Pensar saúde, desigualdades e violências em tempos de pós-pandemia. Site do Laboratório de Práticas em Educação e Saúde - UFSB, 2024. Disponível em: https://laboratoriodepraticasufsb.webnode.page/l/lepsufsb-pensar-saude/